Pudesse não recordar, o morto Ataíde preferia. Da morte não tinha reclamações, mas de suas primeiras lembranças, de quando ganhou sua primeira bicicleta e estava vestido de marinheirinho, antes de não fazer a curva e ser atirado contra uma cerca de arame farpado, dessa época, sim, preferia não guardar recordação.
Não porque seu pulmão – agora definitivamente morto – lhe estragasse ou perturbasse a infância. Não porque lhe vestissem de marinheirinho. Não por nada não e muito menos pelo arame farpado. É que agora, morto, não sentia mais que esta outra vida, infantil, feliz, lhe tivesse rendido mais do que a sua grande perda. Mesmo o que carregou para a adolescência fez-se necessário arrancar fora quando chegou a sua “fase adulta”. O que sobrou mesmo, sente, foi a perda.
Sente. Primeiro porque é morto, e depois porque não sabe bem onde foi. Se nas noites em que era obrigado dormir cedo, mesmo sob o barulho do inalador. Noites em claro nas quais inclusive seu destino sonhou (nesse sonho, Ataíde brinca com pequenos objetos ou insetos em meio à sombra ou à escuridão. Estava bem, aquilo era vivo e confortável. Mas uma voz ou algo maior lhe anuncia que sim, haverá outro destino, para sempre).
Foi perda sim. Nas fotos cerebrais de morto, vê olhos que não mais vê no espelho. Fotos de um marinheirinho sem mar, desde então. Orelhas de burro, joelho no milho e beca preta. Foi essa a infância que ficou nas imagens e a sensação de que também perdeu uma chance desavisada, de mudar o mundo, quando não ultrapassou a linha que na escolinha separava as meninas dos meninos, durante o recreio. Foi pela mesma época a derrocada de seu precoce sucesso, ao menos no futebol, onde a força física lhe era mais útil que de fato a habilidade.
Marginalizado, passou a optar por palavras inventadas e mesmo por uma inteligência inventada. Inventou também todos os seus amores, para sempre. Platão teria inveja (o que agora, “no reino”, lhe traz certa contraditoriedade). Brigou com seu primo pelo primeiro desses amores. Um soco que não deu, que ficou devendo a todos os seus efêmeros inimigos, para sempre.