sábado, julho 22, 2006

Remédio

A noite em que esmurrou seu padrasto Morto Ataíde teve novamente a oportunidade da vida. No seguimento das desvidas deste personagem, narramos agora a exceção. O fato, consumado, o impulso (não o último) atendido: como um elástico com martelos de pedra sobre o corpo vidrado, preso à parede, impacto. Abelhas voaram sobre o couro do homem que não reagiu. Escoou sob suas mãos e pétreo pelo desprezo contido na surra, não gritou. Apenas, como um ladrão (agora) qualquer, correu. Mas a perseguição não passou de pósfacio. O fato, irremediável. O remédio, que une o mundo, foi dado.

quinta-feira, julho 13, 2006

Assembléia

Sentou ao seu lado, pernas cruzadas. Com o rabo dos olhos tentava uma atenção gratuita, sem a culpa de tê-la chamado. Ela devia conhecer a técnica. Não olhou. O chão esquentava enquanto a assembléia corria e as palavras saiam, passavam pelo martelo de seu ouvido sem lhe falar. Vez ou outra lembrava de suas contas, mas era ela, a mulher de sua vida, ali ao seu lado, sua principal atração. Um toque de despropósito. Normal. Seu joelho roçou o dele, nada demais. Não é um sinal. Não foi por querer. "Rubras noites perseguem meus pesadelos diários", pensou em sussurrar algo do gênero, um verso em prosa, qualquer coisa que impressionasse naturalmente. E assistia a assembléia decidir a vida que nem mais queria. Não se não estivesse pousado nú sobre a magra silhueta de ombros agora colados aos seus. Estava decidido, mas tomou conta da situação a mulher. Poderia, se quisesse, levantar, com calma, calar o falatório, pegá-lo com violência e impor-lhe um tango perante os embasbacados expectadores. Poderia — ela sim — pousar-lhe sobre os ombros uma nudez sem pudor, e guiá-lo pela vergonha de ser dominado. Poderia tê-lo casado sem ouvir-lhe o "sim". Poderia, mas não quis. Não quis beijá-lo nem com o rabo dos olhos. Não percebeu que era a mulher de sua vida. Cruzou também suas pernas, roçou seu joelho no dele, e pediu desculpas.

Arcanjo Gabriel faz a cena

Ataide, Ataíde... Já sentado, aguardando o que lhe traria a eternidade, Ataíde ainda sentia fome e até certo ponto, frio. Como num cenário de filme futurista, o branco perdia-lhe os olhos, a monotonia era literal. No continuar de suas recordações, um momento sem qualquer importância veio-lhe à cabeça. Com seu pai, no velho fusca, descia uma rua de paralelepípedos que desembocava na avenida principal da cidade. Falava qualquer coisa ao pai, não se recorda. Sabia que aquele momento um dia seria lembrado e pensou que o cérebro tem seus caprichos de cérebro. Um ponto longínquo fez-se ver. Continuou o pensamento perdido, que agora lhe mostrava, já na rua principal, uma ladeira que desce beirando a ribanceira de matagal e mata virgem mais abaixo. Segurava o painel e tinha interesse pelo que o pai falava. Talvez ali tenha lhe ensinado o segredo de crescer, como fazem sempre os pais aos filhos, ou talvez o filho, Ataíde, ensinasse ao pai o segredo de resistir criança, ouvindo com os olhos ensinamentos que lhe foram inúteis e fez questão de esquecer. O ponto parecia crescer em sua direção. Rumo à igreja da cidade, situada na praça da cidade, o carro descia e Ataíde tem, abrimos aqui um parênteses, a nostálgica impressão de que todas as suas recordações se passam em dias de especial veludo, quando não há de fato calor, venta o suficiente e há sol. O ponto cresce em negro, e toma grande vulto. Uma fila nasce. Carros pacientes esperam com tempo de cidade pequena e transito de metrópole distante. A volta na praça demora tanto assim uma só vez ao ano. Um a um os carros recebem água benta em seus pára-brisas e ultrapassam o ponto negro...

Infante ataíde

Pudesse não recordar, o morto Ataíde preferia. Da morte não tinha reclamações, mas de suas primeiras lembranças, de quando ganhou sua primeira bicicleta e estava vestido de marinheirinho, antes de não fazer a curva e ser atirado contra uma cerca de arame farpado, dessa época, sim, preferia não guardar recordação.

Não porque seu pulmão – agora definitivamente morto – lhe estragasse ou perturbasse a infância. Não porque lhe vestissem de marinheirinho. Não por nada não e muito menos pelo arame farpado. É que agora, morto, não sentia mais que esta outra vida, infantil, feliz, lhe tivesse rendido mais do que a sua grande perda. Mesmo o que carregou para a adolescência fez-se necessário arrancar fora quando chegou a sua “fase adulta”. O que sobrou mesmo, sente, foi a perda.

Sente. Primeiro porque é morto, e depois porque não sabe bem onde foi. Se nas noites em que era obrigado dormir cedo, mesmo sob o barulho do inalador. Noites em claro nas quais inclusive seu destino sonhou (nesse sonho, Ataíde brinca com pequenos objetos ou insetos em meio à sombra ou à escuridão. Estava bem, aquilo era vivo e confortável. Mas uma voz ou algo maior lhe anuncia que sim, haverá outro destino, para sempre).

Foi perda sim. Nas fotos cerebrais de morto, vê olhos que não mais vê no espelho. Fotos de um marinheirinho sem mar, desde então. Orelhas de burro, joelho no milho e beca preta. Foi essa a infância que ficou nas imagens e a sensação de que também perdeu uma chance desavisada, de mudar o mundo, quando não ultrapassou a linha que na escolinha separava as meninas dos meninos, durante o recreio. Foi pela mesma época a derrocada de seu precoce sucesso, ao menos no futebol, onde a força física lhe era mais útil que de fato a habilidade.

Marginalizado, passou a optar por palavras inventadas e mesmo por uma inteligência inventada. Inventou também todos os seus amores, para sempre. Platão teria inveja (o que agora, “no reino”, lhe traz certa contraditoriedade). Brigou com seu primo pelo primeiro desses amores. Um soco que não deu, que ficou devendo a todos os seus efêmeros inimigos, para sempre.

Um sussuro para o mundo

Sabe-se que a literatura dos mortos não cabe na realidade humana. É verdade que algumas brechas dela eles nos dão: sussurros, vultos (que são o tempo de uma página virada) ou mesmo o clássico chamamento pelo nome, que mais me parece uma chamada ao interlocutor: "Leitoooorr!!" - "ouça a minha história", completaria eu. Sendo assim, não é o caso de se ter medo do morto em si, mas sim - e eu teria - da sua história. A história de um morto é o que vive dele e pode ser letal.

Ai reside o perigo da decisão de Ataíde, que foi até um bom cidadão, mas morreu amargurado. Doeu-lhe na carne, em seus últimos segundos, uma existência falha e um conjunto de credos claramente insustentáveis. Agora morto, abre os olhos e languidamente percebe a inexistência, a completude de dúvida que é uma alma sem corpo. Agora morto, não lhe resta decisões plausíveis. Pensa consigo: "pensei demais". Pensa que agora tem os lábios que sempre quis a dois centímetros de sua boca, sem se esforçar. Novamente em vão.

Mas compreendendo essa sua imaterialidade, passa a visualizar todo o problema do mundo. Sente-se o próprio sentido do adjetivo "holístico". Sente-se inteligente, conteúdo, multidisciplinar! Verbo em forma de morto. E a felicidade desse momento quase lhe desfaz a situação de óbito. Quase lhe traz as entranhas que em seu túmulo os vermes comem.

Sólidos, porém, são os caminhos da morte e há, obrigatoriamente, de se caminhar. Porque agora é morto, percebe que não pode mais. Que nunca falou, mas que agora não pode falar. Não pode. Não. O que lhe resta a não ser sussurrar? A não ser vulto para os que quase dormem ou nome para os que querem escutar.

Ataíde não mudou. Não realizou o sonho utópico de criança que tivera enquanto cochilava com o barulho do aparelho de inalação, tentando respirar. Não sofreu o necessário trauma da vida real que este cochilo fatídico lhe impôs ou anunciou. Continua um sussurro ou uma cantiga para o mundo, a única diferença é que morreu.

A história do chamamento pelo nome

Deitado já sob o solo que lhe puseram as pás, pensava sinceramente que não era de bem um morto falar. Ainda que Machado o fizesse anteriormente, ainda que fosse da literatura corrente, pensava que clamar, fosse o que fosse, mais ainda não tendo sido de seu costume quando em vida, seria inútil ou, no mínimo vulgar. Sendo assim, resolveu o morto Ataíde ficar calado. Resolveu que quando morto, e agora sim era o caso, quando morto não deveria mais falar. Chegou a tal conclusão e seria, por todos os tempos, morto em silêncio. No fim acabou realmente por não falar. Também não ressuscitou, que isso já era coisa de morto mais importante. Mas resolveu que em silêncio, com seus botões, deveria sussurrar uma cantiga fina, como garoa de cidade grande, que não serve para nada, a não ser molhar. Escolheu que seria o sussurro sua arma mortal, sua assinatura viva de morto pra sempre. Para enfeitar também virou vulto, daqueles que sombreiam quando ao sono alguém luta para não se entregar. E é para estes que a cantiga do Ataíde, não fazendo sono, vira chamamento do nome e sinal de azar.

Último ato

Seu último ato foi o impulso. De resto o vento carregou. Terceiro andar... Pois pulou e pressentiu o tempo que leva o arrependimento. Morreu antes. Foi caindo, a cara contra o vento, e... uma imagem que vem e passa. Seu corpo cai, a imagem passa. Outra, e passa. Nada fica, a não ser a próxima, que passou. A queda torna-se túnel. Cinema de carne e osso e a película estragada.